terça-feira, 10 de maio de 2011

Vida Eterna







Pedro andava na direção da luz e sentia uma felicidade que raramente sentiu em vida. Tal vida não havia sido muito gentil com ele nos sessenta anos que esteve na Terra. Quando criança, aguentou quieto as surras do pai alcoólatra. O pior era ver sua mãe ser violentada física, sexual e psicologicamente. Quando o pai morreu nada melhorou, pelo contrário: Pedro largou a escola para começar cedo sua vida de trabalhador. Nunca teve infância e antes mesmo de completar 18 anos, já havia passado pelos piores pesares da vida adulta. Os poucos momentos de prazer e felicidade, que teve durante o resto de sua vida foram ilhas de satisfação em um grande oceano de trabalho duro em troca de pouco.

Mas agora, nada disso importava. Seus ossos não doíam mais, seus olhos não eram mais embaçados, seus pulmões não doíam e as preocupações não mais existiam. Uma morte rápida e indolor foi a última coisa boa que havia lhe acontecido. Com a esperança de uma vida eterna para descansar e ser feliz enchendo seu coração, ele apressou os passos na direção da luz.

Andou, andou, andou, cada vez mais rápido até que, de repente, trombou com uma outra pessoa parada. Pediu desculpa pelo seu jeito estabanado e só então percebeu que estava em um lugar amplo, iluminado, onde tudo era branco e o ar era fresco e puro. Ele percebeu que o homem em que havia esbarrado era o último de uma fila que, nesse ponto, já se estendia para trás de si.

"Onde estamos?" Perguntou Pedro para o homem na sua frente.

"Não sei bem ao certo." Respondeu o homem. "Mas pelo que entendi, este é o limbo."

Pedro aguardou na fila ansioso. Sua vida eterna de paz e traquilidade estava para começar. A fila era gigantesca e parecia que nunca iria chegar sua vez, mas isto não importava. Aguardou mantendo a chama de felicidade acesa em seu coração cheio de fé. Reparou que algumas pessoas passavam direto por eles e iam para o grande portão de entrada do céu. Não entendeu, mas preferiu ignorar. Chega de preocupações. Não mais. Estava livre dos supérfluos problemas terrenos.

Muito tempo depois chegou finalmente sua vez. Havia uma cabine com uma mulher vestida de branco, o cabelo preso em um coque e batom vermelho vivo. Ela digitava no que parecia ser um computador e disse sem olhar nos olhos de Pedro.

"Nome completo."

Pedro estranhou aquela cena. Não esperava ser recebido assim nos portões do paraíso.

"Você é um anjo?" Perguntou ele curioso.

A mulher o olhou com desdém e disse: "Não seja estúpido e responda a pergunta. Tem milhares

de pessoas morrendo todo segundo e não temos tempo para ficarmos de bate-papo. Nome completo".

Pedro respondeu e não perguntou mais nada. A mulher digitou velozmente em seu teclado e foi falando em uma voz monotonal, como um robô: "Não foi à Igreja em nenhum domingo nos últimos dois anos e contribuiu com o dízimo apenas duzentas e treze vezes em toda sua vida, somando um valor total de R$4.108,56. Sua renda média era de R$310,00 por mês. Hummm... Sua situação não é boa... Não é mesmo."

"Eu vou para o inferno?" Perguntou Pedro sentindo um peso em seu estomago.

A recepcionista deu uma leve risada sarcástica e respondeu: "Não tenha tantas esperanças, pois isso não existe mais. Seu setor é o 7b da Área Laranja. Pegue o transporte correspondente e durante a viagem você receberá todas as instruções. Próximo!"

Bem,... Aquilo não era, realmente, o que Pedro esperava da sua chegada ao céu, mas nada era capaz de abalar sua fé. Ele queria apenas descansar e quem sabe reencontrar com sua mãe.

O transporte que a recepcionista indicou era na verdade um ônibus. Isso mesmo. Um velho e comum ônibus, que esperava com o motor ligado ao lado de vários outros parecidos. Alguns eram bastante confortáveis e em frente à eles havia uma fila de pessoas bem arrumadas, como que se fossem para uma festa chique. Em seu ônibus, pelo contrário, todos estavam trajando roupas simples, ternos baratos e seus rostos mostravam as marcas de uma vida de trabalho árduo.

Finalmente embarcou e a viagem começou. Um guia falava com todos com a mesma frieza que falava a recepcionista. Ele fez com que os passageiros rezassem o Pai Nosso e a Ave Maria e depois explicou como seria a vida eterna. Se Pedro não estivesse tão alarmado com o que ouvia, olharia pela janela e perceberia que o céu não era tão diferente de uma cidade comum. Uma cidade semelhante com aquela da qual ele veio. Passaram por casarões muito ricos, onde as pessoas descansavam sob o ar fresco e pareciam bastante felizes. Porém, com o passar do tempo, as casas foram se tornando menores e mais feias. As poucas pessoas que transitavam por aqueles lugares não pareciam ser muito felizes.

Mas Pedro não viu nada disso. Ainda tentava entender as palavras do guia. Não que fossem difíceis, ou proferidas em outra língua. O problema é que eram palavras que ele jamais achou que fosse ouvir ao chegar no paraíso. Não entendia por quê ele falava que todos precisavam acordar as cinco horas da manhã e irem trabalhar para a abençoada fábrica do Senhor, onde estariam ajudando Deus a concretizar um propósito maior.

"Tudo o que vocês farão a partir de hoje tem um propósito divino.” Dizia o guia. “Jamais devemos questionar ou duvidar desse propósito, se não estaremos questionando a vontade do próprio Deus. Devemos deixar nossa fé nos guiar e seremos felizes e protegidos para sempre pelo Senhor."

Não era essa idéia de céu que Pedro tinha em mente. Achou que poderia, finalmente ter o descanso que ansiou desde criança e não uma rotina diária. Mas aquele homem devia estar certo. Há de haver um propósito em tudo que Deus faz. Ele escreve certo com linhas tortas.

Assim começou a vida eterna de Pedro. Acordava cedo e ia trabalhar nas fábricas do Senhor. Não entendia bem o que produziam, mas não ligou para isso. Aprendeu a afastar aquela dúvida que pairava como uma sombra sobre seu coração cheio de fé. Não importava o que faziam, pois faziam em nome de Deus. Esse era o pensamento geral. A grande maioria dos trabalhadores não questionavam esse propósito. Para aqueles homens de pouca fé, que ousavam duvidar dos objetivos divinos, haviam os Inquisidores. Estes eram como a polícia terrena e estavam ali para garantir que a fé nunca fosse abandonar os corações e as mentes de nenhuma alma.

Passaram-se dias, meses e talvez anos. Não sabia quanto tempo estava no paraíso. A rotina diária era psicologicamente cansativa e mesmo que não sentisse dor ou cansaço físico, estava sempre exausto. Os domingos eram dedicados ao agradecimento. Passavam o dia inteiro rezando. Depois de tanto tempo, não cumpria mais os afazeres motivado pela fé e esperança, ele apenas fazia. Se acostumou a levantar, trabalhar, rezar e dormir e não sabia mais como seria sua vida eterna sem esta rotina, que já estava internalizada. Pedro havia esquecido do seu sonho de descanso eterno.

Assim ele viveria por toda eternidade. Porém, em um dia qualquer, que prometia ser igual a todos os outros, algo lhe chamou a atenção. Viu ao longe um rosto que lhe pareceu familiar e que não via a vários anos. Correu por entre a multidão de pessoas, que voltavam para suas casas, até alcançar a mulher. Ela o olhou assustada por ser interrompida em seu trajeto.

Pedro ficou alguns segundos parado em frente à ela seus olhos se encheram de lágrimas. Uma emoção que não sentia desde que chegara naquele lugar tomou conta de si e com algum esforço falou: "Mamãe,..."

A mãe de Pedro continuou a encará-lo com uma expressão confusa, mas que logo se transformou em alegria e emoção, tal qual a de Pedro.

Eles se abraçaram, sorriram e tentaram falar muita coisa ao mesmo tempo. Ficaram parados no meio da rua, enquanto todos passavam por eles. Esqueceram onde estavam e o que faziam, queriam apenas se curtir.

Quando o movimento de almas trabalhadoras cessou, se aproximou um homem de uniforme negro e uma cruz no peito, interrompendo o reencontro.

"Andem! Andem!" Disse o inquisidor. "Não podem ficar aqui parados!"

"Mas este é meu filho, senhor." Disse a mãe de Pedro. "Eu espero por esse momento a mais tempo que posso contar. Me deixe ficar mais um pouco com ele?"

"Negativo." Respondeu o homem. "Saiam agora ou serão detidos."

"Veja bem,..." Tentou argumentar Pedro, mas quando tocou no ombro do Inquisidor, este torceu seu braço de forma bastante dolorida.

"Soltem meu filho!" disse a mãe de Pedro correndo em sua.

O Inquisidor soltou Pedro e bateu com o cassetete em forma de cruz no rosto da mulher desesperada, que caiu no chão chorando. Pedro viu aquela cena e se lembrou de todas as vezes que viu sua mãe apanhando. Esqueceu de toda fé, esperança e amor que carregava em seu coração. Agora só conseguia sentir ódio. Jogou o Inquisidor no chão e começou a bater nele. Fazia isso com muita fúria, como que para compensar todas as vezes que quis e não pode defender sua mãe.

Logo chegou um carro preto com a cruz característica dos Inquisidores. Três homens saíram de dentro dele e subjugaram Pedro que foi levado, ainda lutando, para dentro do veículo.



Andando de um lado para outro na cela suja e mal iluminada, Pedro tentava entender o que estava acontecendo.

"Que lugar é esse!?" Gritava. "Isso não é o paraíso?! Não pode ser! Eu vim para o Inferno! Ou será que estou sonhando? É isso... Tudo isso é um longo pesadelo sem fim."

Havia apenas mais um homem na cela, que acompanhava calado a agitação de Pedro, até aquele momento: "Um: você não está sonhando. Dois: Isto é sim um pesadelo e três: não existe inferno, portanto, estas no céu mesmo."

"Não pode seeer!" Gritou Pedro.

"Mas eu te garanto que é. Olha calouro, estou aqui há várias vidas humanas e sei bem como as coisas funcionam. O Inferno não existe mais, mas já existiu. Há muito tempo. Muito antes deu vim para cá.

"E o que houve?" Perguntou Pedro.

"Não sei ao certo, mas deve ter sido bastante útil, para ambos os lados, esta unificação." O homem acendeu um cigarro e começou a fumar.

"Você que diz saber tanto...” Continuou Pedro inquieto. “Em que nós trabalhamos todos os dias naquela fábrica?"

"Não percebe, meu caro? Em nada.”

“Como assim?!”

“Em absolutamente nada. Algumas profissões são verdadeiramente úteis: Inquisidores, recepcionistas, guias e motoristas de ônibus, mas a imensa maioria trabalha por nada."

“Por que?"

"Para manter a fé. A crença em um propósito maior é a única forma que existe para que essa massa de pessoas não questione o motivo pelos quais alguns trabalham e outros não. Por que a vida eterna de uns é tão boa e a de outros tão ruim."

"Como que Deus permite isso?"

"Não sei. Comigo é assim: eu não me meto com Ele e Ele não se mete comigo. Durante minha estadia na Terra tentei garantir o que era meu, a minha sobrevivência, custe o que custar. Aqui não é diferente, rapaz."

"Não pode ser. NÃO PODE SER!" Gritou Pedro batendo em uma das paredes. "Eu preciso falar com Deus. Eu preciso entender o porque disso tudo!"

O homem deu uma risada, um trago no cigarro e disse: "Não se fala com o Chefe assim. Mas se você quiser muito, eu conheço uma forma..."

Os dois prisioneiros fugiram através de uma passagem secreta que só aquele homem conhecia. Andaram por túneis subterrâneos escuros, frios, fétidos e assustadores. Quem diria que haveria lugares tão podres em pleno paraíso. Eles caminharam por horas, até que o homem parou.

"Aqui em cima é o palácio real. A Santa Casa do Senhor. Eu ainda acho que isto é uma loucura, mas o que pode acontecer com você? Morrer?" E riu satisfatoriamente.

"Eu vou entrar." Decidiu Pedro.

Precisava entender o motivo daquilo. Descobrir se, de fato, tudo o que ele aprendera em sua vida na Terra estava errado.

"Antes de ir, toma isto." O homem tirou da veste uma pistola calibre 38. "Esse é de um dos meus contatos na Terra. Utilidade nenhuma, mas vai que assusta alguém. Você fica me devendo essa, heim rapaz."

"Pode deixar."

Pedro passou por um buraco e se viu no hall de um salão imenso e ricamente decorado. Subiu correndo uma das escadas. Não sabia direito para onde ir, mas seguiu seu instinto. Entrou em um grande corredor onde no fundo havia uma porta com uma placa escrita uma simples e poderosa palavra: Deus. Pedro hesitou um pouco. Será que ele estava preste a realizar o sonho de todo ser vivo e não vivo deste e de outro plano? Será que ele poderia ter o mesmo privilégio que teve nosso Senhor Jesus Cristo e falar diretamente com Deus? Como será que é Deus? O que ele fará para Pedro? Todas essas questões só poderiam ser resolvidas de uma forma.

Ele então juntou toda sua coragem, avançou até a porta, fechou os olhos e a abriu de supetão.

Uma forte luz o cegou temporariamente e ele não pode ver quem estava lá. Quando se acostumou com a claridade, viu que a luz vinha da janela, onde o sol batia. A sala era redonda, com decoração fina e uma grande mesa de carvalho no centro. Atrás desta mesa estava um homem de terno e gravata, cabelos e barba branca. Na sua frente, em uma cadeira menor, estava jovem magro, de cabelos pretos bem penteados com gel. Ambos fumavam charuto e bebiam um vinho caro. Eles observavam com estranhamento o invasor.

"Humano!" Disse o homem de cabelo preto.

Pedro deu alguns passos para frente olhando fixamente para o homem de barba branca. Quando finalmente conseguiu falar perguntou:

"Deus?"

Os dois homens riram prazerosamente.

"Quem é você, meu filho?"

"Me chamo Pedro e tenho muitas perguntas para o Senhor."

O homem levantou-se de sua cadeira e foi cumprimentar Pedro. "Me chamo Jammes. Na terra era um grande empresário, dono de muitas fábricas na Europa, na África e na Ásia. Quando morri em 1909, achei que era o fim de minha bela vida. Como eu estava enganado... Sou apenas um homem. Como você. Não sou exatamente quem você procura."

"E onde está Deus?" Perguntou Pedro sem entender.

"Agora eu estou no lugar dele. Quero saber o que você está fazendo aqui. De que área você é?"

"Aposto que é da Área Laranja.” disse o mais jovem.

"Quem você pensa que é para tomar o lugar de Deus?!" Disse Pedro enfurecido. "Então foi você quem transformou esse lugar em um inferno! É você que põem a gente para trabalhar sem qualquer objetivo, enquanto fuma e bebe! Quando Deus souber,..."

"DEUS ESTÁ MORTO!" Gritou Jammes com altivez.

Pedro sentiu como se seu coração derretesse.


"Você,..." Gaguejou.

“Claro que não! Não sou tão poderoso. Fomos todos nós que o matamos! Há muito tempo. Muito

antes deu vim para cá. Foi quando as primeiras pessoas resolveram que seria uma boa usar seu nome para fins pessoais. Quando a Igreja construiu seu império com sangue e os ossos em nome da suposta palavra de Deus, ele já estava morto! E eu? Eu salvei esse lugar! Antes de mim, isto era uma bagunça, abandonado às baratas! Eu tornei isto eficiente. Dei uma vida eterna boa para aqueles que sempre tiveram e mereceram uma vida boa! Dei um propósito para aqueles pobres miseráveis que não tinham pelo que viver. Vocês já estavam acostumados com o trabalho pesado, mas agora fazem por fé. Este lugar é um paraíso sabe porque, Pedro? Por que é igualzinho a Terra. É o nosso paraíso."

Pedro olhou no fundo dos olhos do homem que se colocara no lugar de Deus. A dor que sentiu foi mais forte do que tudo que já passara. Não sabia mais o que fazer. Foi então que se lembrou do que carregava escondido e sacou o revólver. Os dois homens olharam sem demonstrar qualquer reação. Pedro engatilhou a pistola, apontou para a própria cabeça e atirou.

Sentiu seu rosto bater contra o chão frio quando caiu. Sentiu o sangue quente escorrer por seu rosto e sujar o fino mármore da sala. Viu os dois homens o olhando e sorrindo e só então compreendeu o óbvio: jamais poderia se matar, pois já estava morto. Uma lágrima escorreu e se misturou ao sangue inútil esparramado. Imóvel, viu o homem de cabelo preto se levantar e ir cumprimentar Jammes. Sua sombra na parede revelava algo que não era visível: Um rabo comprido e chifres em sua cabeça.

"Vida eterna... Adoro essa palavra.” Disse ele. "Chefe, nem eu poderia fazer um lugar melhor."

Então Pedro viu quem agora mandava no céu: os mesmos que mandam a séculos na Terra.

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