terça-feira, 25 de maio de 2010
Memórias de um Operário Menos Conhecido
Meu nome é José Nascimento da Silva e vou contar agora a história de parte da minha vida.
Tudo começou há muito tempo quando eu ainda era um moleque de 10 anos de idade e vivia com minha mãe Márcia e minha vó Leocádia numa comunidade pobre de uma grande cidade. Minha mãe, empregada doméstica, saía as quatro horas da manhã para ir trabalhar e me deixava aos cuidados da minha vó que me arrumava e me levava para a escola.
Eu gostava de ir para a escola. Era lá que via meu melhor amigo Roberto. Roberto era um garoto muito esperto e companheiro, admirado pela maioria das pessoas, mas somente eu tinha o privilégio de receber o título de seu Melhor Amigo. Sempre o chamava de Beto, mas as outras pessoas costumavam chamá-lo de Azulão, devido a sua pele tão negra que mais parecia um azul escuro. Beto não ligava, na verdade até gostava, dizia que era mais fácil ganhar dos “pálidos” no pique-esconde, brincadeira que de fato ele era mestre.
Na verdade era difícil achar algo que Beto não era bom. Diferente de mim que sempre fui uma negação nos esportes, Beto era o primeiro a ser escolhido na pelada diária depois da escola.
Foi numa dessas peladas que nossa calma vida de moleque sofreria uma reviravolta impressionante.
O jogo já havia começado no campinho de terra perto de nossa casa. Eu buscava meu melhor posicionamento no campo, o mais distante possível de qualquer chance de passe ou outra participação na jogada e Beto já havia feito 2 dos 4 gols da vitória parcial de nosso time por 4 a 1. Foi quando ouvimos o pipoco característico de dois tiros seguidos de um. Mesmo naquela época, já estávamos acostumados com esse tipo de som, mas o que chamou nossa atenção dessa vez foi a direção dos disparos.
Beto morava com a mãe e o pai a três casas da minha. Minha mãe não gostava muito da minha amizade com Beto, pois dizia que falavam por aí que os pais deles eram envolvidos com coisa ruim. Na casa deles, de vez em quando e na maioria das vezes de madrugada, apareciam pessoas de fora da comunidade e ficavam lá dentro um tempão até saírem também escondidos. Beto nunca falava sobre isso e eu também não perguntava muito. Porém, as vezes que vi seus pais, eles me pareceram pessoas muito boas.
Como eu ia contando, era de lá que viam os disparos... Eu e Beto imediatamente abandonamos o jogo, apesar dos protestos de alguns mais lesados. Corremos lado a lado – mentira, ele correu bem à frente, é obvio, e eu fui tentando alcançá-lo. Quando viramos a esquina vimos as sirenes da polícia e um monte de curiosos que já se aproximavam do local e o local, como temíamos, era na frente da casa do Beto.
Beto sempre soube, desde o momento que ouviu os disparos, que eles vinham de lá, mas desejava estar errado. Quando finalmente cruzei pelos curiosos em volta do local vi Beto parado, aparentemente sem reação olhando a cena. Nunca mais vou esquecer disso... Apesar de sua aparente falta de expressão, vi quantos sentimentos estavam em seus olhos enquanto mirava para seu pai e sua mãe deitados numa poça de sangue. O pai jazia deitado sobre o corpo da mãe. No corpo dela havia dois tiros no peito e no pai um tiro na nuca. De dentro da casa os policiais tiravam muitos papéis e três armas: duas pistolas e um rifle. Na roda de curiosos muitos comentavam coisas como: “Eu sempre soube que eles não eram boa gente.”, “Aposto que vendiam drogas.” e até mesmo: “Não duvidaria que o filho estivesse nessa também.”.
Nunca na minha vida, até aquele momento, havia sentido tanta raiva como eu senti daqueles abutres. Não sabia e nunca soube o porquê os pais do Beto foram mortos e mesmo tendo, um grande jornal, no dia seguinte estampando na capa a frase: “Terroristas mortos”, eu não conseguia ver maldade naquelas pessoas.
Minha mãe chegou mais cedo do trabalho, pois havia recebido a notícia de um vizinho fofoqueiro. Veio direto até mim e me puxou arrastando para fora do tumulto, escapei de suas mãos, corri até Beto, lhe dei um abraço não correspondido e falei assim no seu ouvido: “Eu nunca vou te abandonar Beto!”, ele nada respondeu e continuou ali parado enquanto minha mãe me arrastava e tagarelava no caminho para casa.
Beto foi para a casa da tia que ficava do outro lado dessa mesma comunidade. Continuamos nos vendo na escola até o final daquele ano, mas nunca mais voltamos juntos para jogar a tradicional pelada depois da escola. Beto dizia que sua tia não deixava e que agora ele morava mais longe, mas sei que ele também não andava com ânimo para mais nada, o que não era surpresa. Eu me sentia triste por não saber como ajudar.
Nas férias de verão daquele ano fui visitá-lo duas vezes. Brincamos um pouco e eu voltava antes que escurecesse. Minha mãe não gostava da idéia, mas deixava quando eu insistia muito e as vezes ia escondido. Mesmo brincando de tudo que brincávamos antes Beto não parecia mais o mesmo.
No primeiro dia de aula do ano seguinte esperei por ele e não o vi. Esperei uma, duas semanas sem ter notícia. Decidi que ia passar na sua casa depois da aula sem que minha mãe ou minha vó soubessem. Chegando lá encontrei a casa vazia sem ninguém. Sentei na soleira da porta e esperei, esperei e esperei. A noite já avançava muito e eu não tinha mais nenhuma esperança de encontrá-lo quando o vi chegando. Beto me explicou que agora estava trabalhando na mesma indústria que seus pais trabalharam. Sua tia o obrigou, porque as despesas aumentaram muito com sua presença lá. Ela passava dias fora de casa e depois dias em casa sem fazer nada, Beto não tinha a menor idéia do que ela fazia. Disse também que o trabalho é pesado, difícil, muito cansativo e que seu salário vai todo para pagar as contas e comprar comida. Beto guarda cinco reais todo mês para alguma emergência.
Conversamos até muito tarde, para desespero da minha mãe, que me esperava acordada, chorando e não sabia se me batia, me beijava, me xingava ou abraçava quando eu cheguei.
Os anos se passaram e desde aquele dia eu não mais vi o Beto. Dois anos depois minha vó morreu quase no mesmo período em que minha mãe foi demitida. A vida tornou-se cada vez mais dura, a gente nunca saía para se divertir e passei a usar o fim de semana para descolar uns bicos e ajudar na renda de casa. Minha mãe fazia questão que eu terminasse a escola e assim fiz. Meio aos trancos e barrancos, mas consegui. Estava livre para procurar um emprego de verdade.
Tomei muita portada na cara. Muitos nãos. Trabalhei em diversos lugares e fui até camelô por um tempo. Mas meu primeiro emprego com carteira assinada foi numa fábrica perto dali. Esse foi um momento muito marcante na minha vida. Nunca havia esquecido meu amigo de infância Beto, mas essa era uma daquelas lembranças que pertenciam somente à um passado que hoje parecia tão distante. Qual foi minha surpresa ao ver Beto, o Azulão, ali entre os trabalhadores na linha de montagem da fábrica.
Beto quase não me reconheceu, e para falar a verdade ele também estava bem diferente, mas reconheceria aqueles olhos astutos em qualquer lugar. Nos falamos rapidamente, até sermos repreendidos pelo capataz que nos mandou voltar ao trabalho. Almoçamos juntos e rapidamente trocamos algumas idéias, mas o tempo de almoço também não era suficiente para amigos separados há 10 anos. No fim do turno resolvemos trocar umas idéias num bar que ficava nas redondezas tomando algumas cervejas.
O assunto rendeu algumas garrafas postas na conta do Beto, para desgosto do, com razão, desconfiado, dono do boteco que disse: “Só porque é você Beto e porque eu tinha muita consideração por seus pais.”. O assunto variou muito. Falamos dos tempos de criança, das travessuras, das brincadeiras. Falamos do período que não nos vimos, o que fazemos, os romances, e o dia-a-dia difícil do cotidiano do trabalhador. Falamos também de coisas do presente. Beto me disse que faz parte do sindicato e que lá conheceu diversas pessoas que eram amigas de seus pais e não só por isso, têm grande admiração por ele.
Ao falar disso, Beto parecia não estar mais exausto e com sono e seus olhos brilhavam da mesma forma que brilhavam quando íamos jogar bola depois da aula. Ele me disse que é difícil e que devemos tomar muito cuidado, mas que acredita que vale a pena porque um dia a vida dos trabalhadores negros e brancos pobres iria mudar! Confesso que era a primeira vez que eu ouvia coisas assim e que muito do que ele falou eu não entendi, mas só pela forma que Beto falava me motiva para seguir seus passos.
Nos aproximamos novamente e logo eu percebi o quanto Beto era popular naquela indústria. Bom, pelo menos entre os trabalhadores, o capataz e pelo que contam, o dono da fábrica que nunca víamos, não iam muito com a cara de Beto.
No refeitório havia uma grande imagem de um homem branco, com seus 40 anos, de terno e gravata, loiro e de olhos claros, com um sorriso no rosto. Diziam que aquele era o dono da fábrica e todos temiam aquele retrato que parecia vigiar-nos.
Conheci muitos amigos dele que compartilhavam do seu sonho de uma vida melhor para os trabalhadores e aos poucos fui entendendo como funcionava a dinâmica do sindicato.
Muitas vezes o patrão arrumava um jeito de boicotar e persegui os membros do sindicato e certamente Beto era um dos mais visados. Ele me explicou que já fora pior e que agora as coisas estavam mudando. A vez do trabalhador chegaria!
Pouco tempo depois os trabalhadores entraram em greve geral e eu acompanhei de perto a atuação de Beto e de outros líderes naquela greve. Lutávamos por melhores salários, melhores condições de trabalho entre outras demandas. Foi a coisa mais impressionante, assustadora e bonita que já tinha visto. Um mar de gente até onde a vista alcançava estava no pátio ouvindo Beto e os outros falarem. As faixas, as palavras de ordem, isso tudo me fez acreditar pela primeira vez que aquele mundo diferente que Beto tanto falava poderia, de fato, vim a ser real!
A greve durou vários dias e o governo declarou que aquilo era ilegal. Os trabalhadores decidiram não voltar ao trabalho. Depois foi feito um acordo e somado a exaustão de dias de luta, a greve terminou.
Infelizmente não só os patrões descumpriram o acordo como dias depois o presidente do sindicato, Beto e mais 16 sindicalistas foram presos e afastados do sindicato.
Me doeu no coração ver no jornal o dono da fábrica chamando os grevistas de vagabundos e oportunistas. Sabia que isso era mentira e que Beto não era assim.
Era esse tipo de dificuldade que Beto já havia me falado e me alertado. Ele me dizia: “Zé, as coisas serão muito difíceis. Ainda apanharemos muito antes de conseguir mudar tudo!”. Com isso em mente, em nenhum momento perdi minha fé em Beto e suas idéias.
O tempo foi passando. Disseram que o regime político havia mudado. Eu devo confessar que não notei tanta diferença. Na verdade, as coisas pareciam ficar cada vez mais difíceis.
Beto conseguiu voltar ao trabalho e a sua luta, mas pelos olhos dele eu sentia alguma coisa diferente. Isso me lembrou daquele olhar do dia em que seus pais foram assassinados. E eu não gostei disso.
Beto estava cada vez mais afastado de mim. Não fisicamente como quando éramos crianças, pois passávamos o dia todo juntos, mas o sentia longe. Seu discurso também foi mudando aos poucos. A sociedade que ele tanto sonhava e que seria tão difícil de conquistar, para ele estava cada vez mais próxima e cada vez mais fácil de chegar lá. Eu estranhava, porque não sentia mudanças significativas acontecendo.
Um dia Beto veio conversar comigo. Ele seria candidato nas próximas eleições e me chamou para participar da campanha. Fiquei feliz por ele, mas disse que seria muito difícil devido ao trabalho diário na fábrica. Beto então me disse que ia largar o emprego, pois estava ganhando para fazer política e que poderia me ajudar. Respondi que iria ajudá-lo sim, mas que continuaria na fábrica e ele aceitou.
Falei com muita gente, distribui muito panfleto no trabalho. Fazia isso, mas sentia que cada vez mais fazia pela amizade e não pela política. Tentei afastar esses pensamentos, afinal de contas Beto nunca iria desistir de mudar o mundo, pelo menos era o que eu queria acreditar.
Beto foi eleito e pela primeira vez o vi usando terno. Confesso que achei horrível, não combinava com ele, mas Beto adorou. Andava o dia todo com aquele terno quente. Ele me convenceu a ser seu assessor no gabinete. Os tempos estavam difíceis e o salário era o mesmo para trabalhar menos. Aceitei, mesmo com o pé atrás.
Outras eleições vieram e o Beto foi crescendo na política.
Outro dia aconteceu algo que me levou estar sentado aqui escrevendo minhas memórias. Algo que feriu e apertou meu coração, como se um trator passasse por cima dele. Eu havia perdido meu amigo Beto...
Estava em seu escritório quando ele recebeu os líderes de uma greve de professores por melhorias salariais, entre outras demandas. Fiquei curioso em assistir a reunião. Acreditava que aquilo poderia trazer o velho Beto de volta e que seria uma ótima oportunidade de conseguir vitórias pelas quais Beto e outros haviam sido presos e todos haviam lutado tanto. Foi quando aconteceu...
A Reunião estava num impasse. Os trabalhadores não queriam recuar em suas reivindicações mínimas e Beto teimava que elas eram utópicas. Em um momento de raiva Beto levanta e diz:
“Vocês são um bando de vagabundos e oportunistas! Saiam já de minha sala!”.
Foi um tiro no peito. Tão forte quanto o tiro que acertou a mãe de Beto há muitos anos atrás naquela comunidade pobre perto daqui. Mas esse tiro que acertou Beto foi dado por ele mesmo.
Voltei para casa arrasado. Sentei de frente para a televisão e fiquei assistindo sem assistir. Pensando no que acabara de acontecer. Derrepende, reconheci um antigo companheiro de sindicato que falava pela TV. Aquele terno também não lhe caia bem. Era da mesma marca que matara o Beto. Ele estava tão diferente. Não era somente a roupa chique ou a velhice. Não reconheci as palavras daquele velho companheiro como não reconhecia mais as do Beto.
Tomei uma decisão. Não consegui dormir essa noite, então sentei aqui e comecei a escrever essa carta que provavelmente nunca mostrarei para ninguém. Saindo daqui vou até o escritório do Roberto e acabarei com isso.
José saiu de casa e o sol havia acabado de nascer. Pegou o ônibus que levava até o centro da cidade, onde ficava o escritório de seu amigo de infância. Fez tudo isso como no piloto automático. Seus pensamentos continuavam viajando por aquela histórias que acabara de escrever, revivendo cada momento ao lado do falecido companheiro.
Subiu o elevador que dava na sala onde trabalhava. Chegara logo depois do Roberto que estava de costas olhando pela janela.
“Beto” – Chamou José, mas não conseguiu a atenção.
“Beto” – Insistiu um pouco menos tímido.
“Senhor?” – Tentou.
Roberto olhou para trás e viu que ali estava seu velho amigo de infância.
“Grande Zé! Estava agora mesmo pensando em você! Estava lembrando de quando éramos moleques e brincávamos de bola depois da aula. Você sempre foi um perna-de-pau!”.
“Quem diria, né Zé, que um dia chegaríamos aqui?”.
“Quem diria...” – Respondeu Zé cabisbaixo. “Beto... Tô fora. Não vou mais trabalhar com
você. Arrumarei um emprego. Não precisa me procurar.”
“Você está louco Zé?! Logo agora que conquistamos tudo aquilo que lutamos quando
trabalhávamos naquela maldita fábrica?! Você não pode desistir de tudo agora!”
“Não estou desistindo. Meu amigo Beto me ensinou que as coisas seriam muito difíceis, mas
que no final iríamos mudar tudo. Agora eu entendo o quanto difíceis essas coisas se tornaram. Mas um dia tudo vai mudar. Eu sei disso.”
“Mas as coisas mudaram! Quando na história desse país você teria um político sindicalista
negro e um presidente...”
“Sindicalista?” – Interrompeu José – “Negro? Olhe-se no espelho, Roberto.”
Dito isso José virou as costas e saiu porta a fora, sentindo-se muito aliviado, apesar de triste.
Ainda surpreso Roberto caminhou na direção de um grande espelho que havia em seu escritório. Mal conseguiu acreditar no que via. Encarando-lhe nos olhos, do outro lado do espelho, havia um homem branco, com seus 40 anos, de terno e gravata, loiro e de olhos claros, com um sorriso no rosto.
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